"Hamnet" | © Focus Features

TIFF 50 | Hamnet pôs Toronto a chorar, Jacob Elordi surpreendeu e Josh O’Connor ganhou novos fãs

Hamnet” com Jessie Buckley e Paul Mescal nos papéis principais e realização de Chloé Zhao foi o grande vencedor do 50º Festival Internacional de Cinema de Toronto – o TIFF! A Magazine HD esteve lá, de 4 a 14 de setembro, para assistir a tudo. E agora chega a hora de recontar o que se viu. Como sempre, foi um grande privilégio ir ao maior festival de cinema do mundo, com uma programação gigantesca que reuniu alguns dos maiores títulos que já passaram em Berlim, Cannes, Locarno e Veneza, assim como uma panóplia de estreias mundiais também.

Contudo, a relevância do TIFF não se resume só à dimensão da sua oferta. A longevidade importa, assim como a variedade. Poucos são os festivais onde os extremos do mainstream e do marginal comungam de forma tão direta. Na mesma hora, um cinema pode estar a passar o próximo êxito da Netflix ou da Paramount, enquanto noutra sala se exibe uma curiosidade experimental filmada num telemóvel dos anos 2000. Há tapete vermelho para as grandes estrelas de Hollywood e também para os autores mais respeitados do cinema mundial, espaço para Brendan Fraser e Lav Diaz.

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Para aqueles que seguem fielmente a temporada dos prémios, o TIFF é especialmente importante, tendo, nas últimas décadas, consolidado a reputação de lançar as campanhas dos filmes com esperanças de Óscar. Quando o público de Toronto enaltece uma obra, é sinal de que a Academia provavelmente fará o mesmo. Lembrem-se das reações tépidas com que Veneza agraciou “Ainda Estou Aqui” no ano passado. Só chegado ao TIFF é que o triunfo de Walter Salles começou a ganhar buzz e a traçar o caminho que o levaria ao triunfo crítico, comercial, com público comum e votantes da indústria.

Mas ainda mais beneficiado está quem ganha prémio em Toronto ou quem se qualifica no pódio. Este ano, o grande vencedor foi “Hamnet” de Chloé Zhao, com o “Frankenstein” de Guillermo del Toro em segundo lugar e o novo filme “Knives Out” de Rian Johnson em terceiro.

“Hamnet” arrebatou o público e está na senda do Óscar.

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“Hamnet” | © Focus Features

Adaptado de um romance de Maggie O’Farrell, “Hamnet” conta a história por detrás do texto mais imortal que Shakespeare alguma vez assinou. Baseando-se em detalhes históricos e ficcionando o resto, o livro traça a ligação entre o trágico príncipe da Dinamarca e o filho do autor que terá morrido de peste bubónica alguns anos antes do seu homónimo chegar aos palcos – em documentações oficiais, Hamnet e Hamlet são o mesmo nome. Assim se estuda o clássico através do prisma da perda parental, olhando para a génese do romance entre William e Agnes, seu matrimónio e vidas separadas entre Stratford e Londres, a perda do filho e o rescaldo perante esse inimaginável transtorno.

Apesar de cortar muita da perspetiva coletiva do livro e expandir papéis paternos que não precisavam de tais alterações, “Hamnet” prova ser uma adaptação capaz de capturar a mágoa que O’Farrell tão bem articulou. De facto, ela escreveu o argumento em parceria com Zhao, cuja direção é ainda mais impressionante que os seus esforços Oscarizados. Trata-se do desenvolvimento de uma cineasta a chegar à maturidade e sua plenitude estilística, sacrificando a influência dos seus ídolos em busca de idiomas audiovisuais mais próprios e pessoais. Aqui reina o plano sequência, composições estáticas e distantes, uma disciplina e sobriedade que só salientam a volatilidade das emoções em cena.

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Isso é especialmente verdade no que se refere a Agnes, interpretada por Jessie Buckley naquele que será o píncaro da carreira até hoje. Autêntica força da natureza, ela é quase primordial, passando dos epítetos da felicidade materna à quietude catatónica de quem se afoga na depressão, pelo florescer do amor até ao desmoronar desse laço perante as pressões de uma domesticidade frustrada. Dito isso, todo o elenco merece aplausos, com destaque para Emily Watson como a mãe do poeta e Jacobi Jupe no papel titular, esse menino imortalizado nos palcos e na imaginação das massas. Através da comunhão da arte e sua audiência, a sua memória nunca morrerá. Afinal, a ficção perdura mais que a nossa frágil carne.

Caro leitor, não posso mentir e permanecer estoico na minha descrição. Confesso que chorei durante grande parte do filme e não fui o único. No grandioso Roy Thompson Hall, raro era o espectador a sair da sala sem os traços reluzentes da lágrima a marcar as feições. Isto depois de, no início da sessão, Zhao ter orquestrado um exercício de respiração e relaxamento, puxando pela rendição do público perante o drama, em semelhança ao que acontece no clímax da sua fita, quando Agnes testemunha o renascimento do filho no palco do Globe. Não admira que o People’s Choice Award tenha ido para Zhao que, assim, se torna na única cineasta a alguma vez ganhar o troféu duas vezes. Já o tinha feito em 2020, com “Nomadland”.

Guillermo del Toro desaponta com “Frankenstein”.

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“Frankenstein” | © Netflix

Se “Hamnet” é uma adaptação primorosa, o “Frankenstein” de del Toro é um fracasso em proporção inversa. Muitos têm apregoado o filme como uma homenagem fiel à obra de Mary Shelley, mas isso é a mais terrível das mentiras. Longe de se manter leal ao romance oitocentista, o realizador mexicano puxa por psicologias Freudianas, elimina personagens fulcrais e inventa umas quantas outras sem sentido algum, explica em demasia o que deveria permanecer um enigma, apela aos excessos próximos do cinema de ação e reconfigura o romance entre Victor Frankenstein e sua amada até ao ponto em que a conclusão da história perde o propósito sentimental.

Enfim, como em todas as produções de del Toro, a cenografia, os figurinos, a maquilhagem e os efeitos são primorosos. Até a música merece elogios pelo classicismo robusto do seu som. Contudo, uma fotografia desenxabida sabota os elementos mais faustosos e põe em causa as escolhas estilísticas com que o realizador explodiu uma história já contada e recontada vezes sem conta. Na mesma medida, a mediocridade de um elenco cheio de grandes nomes é quase suficiente para encobrir o génio exibido por um ou dois intérpretes. Serão eles David Bradley no papel minúsculo, mas fulcral, de um violinista cego e Jacob Elordi como a Criatura sem nome que o cientista louco concebe enquanto vingança contra a Morte.


Del Toro faz tudo para que a audiência simpatize com o monstro, limando as arestas vivas da personagem, mas o seu esbelto ator consegue encontrar valor na reinvenção. Em semelhança a Karloff nos anos 30, Elordi explora o romance trágico da figura, aqui elevado pela ambiência gótica da encenação. Por Toronto, já se falava em nomeações para Elordi, quiçá um novo candidato ao Óscar de Melhor Ator Secundário. Mas o filme não se ficará por aí no que se refere a prémios. Afinal, como todos os trabalhos do realizador, prima pela ostentação dos cenários, figurinos burlescos em cores que queimam a vista, efeitos lúgubres no limiar do grotesco, do nojo até.

Até a fotografia, que não é a meu gosto, terá possibilidades de troféu doirado daqui a uns meses. Fica a aposta, nem que seja porque a Netflix está a fazer campanha ferrenha. Além disso, del Toro foi recebido como uma autêntica vedeta pelas audiências de Toronto, provando a sua popularidade entre o público cinéfilo. E não podia ser de outra forma. Pois, apesar desta obra deixar algo a desejar, as suas credenciais enquanto amante ferrenho da sétima arte não se questionam e esse mesmo afeto está patente em todo o fotograma deste “Frankenstein”, por muito disfuncional que o trabalho possa ser.

“Wake Up Dead Man: A Knives Out Mystery” vai dar que falar.

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“Wake Up Dead Man: A Knives Out Mystery” | © Netflix

Outra grande produção da Netflix em Toronto foi o terceiro filme na saga de Benoit Blanc, detetive sulista que Rian Johnson inventou para “Knives Out” há já seis anos. Depois dessa primeira obra e da sequela “Glass Onion,” chega-nos “Wake Up Dead Man,” ainda mais ambicioso que os predecessores, especialmente ao nível temático. Desta vez, Johnson aponta a sua crítica à usurpação de valores cristãos por uma direita fundamentalista, fiel ao dogma da raiva até ao ponto em que distorce os ensinamentos bíblicos e declara a empatia como pecado capital. Mas, no meio disto tudo, a busca por justiça não é um mero caso de encontrar o culpado.

Porque fazer frente a tais ideologias vai além de desvendar a verdade ou exercer medidas punitivas. Apesar de, como Blanc, Johnson também partir de uma perspetiva secular, a narrativa deixa espaço para a graça divina e o milagre do perdão. Não posso dizer mais senão ainda desvendo partes do enredo que podem tirar valor à experiência de quem ainda não teve oportunidade de assistir ao mais recente mistério “Knives Out”. Por isso, fico-me por noções mais gerais como o elogio ao elenco, cheio de nomes sonantes e dois ou três destaques que realmente merecem uma ovação de pé. Em Toronto, muitas palmas se ouviram aquando desta estreia mundial.

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O primeiro intérprete merecedor de apreço especial é Josh O’Connor. Ainda mais que Daniel Craig, ele é o verdadeiro protagonista de “Wake Up Dead Man,” sustentando a narrativa ao nível dos seus enigmas mais rebuscados, humor negro e intervenções beatificas. No Q&A da estreia, muitos dos seus colegas elogiaram O’Connor, tanto pelo trabalho como pelo prazer da sua companhia, uma prova inegável da sua popularidade dentro da indústria. O maior apreço veio mesmo de Craig e da outra vedeta que eleva “Wake Up Dead Man” acima de tantas outras produções semelhantes. Refiro-me a Glenn Close que, aqui, tem a sua melhor prestação desde que concorreu ao Óscar com “A Mulher”.

Tentar descrever quão sublime ela é neste papel secundário é um desafio para qualquer crítico, tamanho é o assombro. Começando num registo caricato, mais próximo da paródia que do mistério, ela puxa pela gargalhada e gradualmente desvenda o fervor melodramático de uma grande estrela do grande ecrã e veterana dos palcos. Vê-la devorar os monólogos de Johnson é um prazer do outro mundo e até o chão parece estremecer perante a sua magnificência. Não há limites para o que Close está disposta a fazer pelo filme, arriscando o burlesco e o ridículo na sua peregrinação ao êxtase cinematográfico.

Park Chan-wook e Joachim Trier consagrados com novos prémios.

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“Sentimental Value” | © NEON

Para terminar esta primeira reflexão sobre o 50º TIFF, há que se falar dos novos prémios introduzidos para celebrar tão importante aniversário. São eles um segundo People’s Choice Award e subsequentes menções honrosas. Só que, desta vez, o voto incide exclusivamente sobre produções internacionais, dando mais oportunidade a tais cinemas para marcar a diferença sem terem que defrontar diretamente a oferta hipercomercial que Hollywood propõe. O grande vencedor foi “No Other Choice” de Park Chan-wook, esse mestre do cinema sul-coreano cujo nome já é bem famoso graças a filmes como “Oldboy”, “A Criada” e “Decisão de Partir”.

Depois de sair de Veneza sem qualquer galardão do júri oficial, esta sátira sangrenta fez Toronto render-se às suas loucuras. Trata-se de um texto fortemente anticapitalista, onde a valorização própria com base na produtividade, lucro e emprego é posta à prova quando um trabalhador da indústria papeleira se vê despedido e em busca infrutífera por novo posto. É um ataque ferrenho à alta-burguesia de uma Coreia moderna, assim como à influência americana na mentalidade da nação, levando a uma psicose aqui exposta na forma mais extremada, articulada em maximalismos estilísticos sem estribeiras ou vergonha. Não se assustem com a descrição, pois este não é um manifesto severo. Pelo contrário, “No Other Choice” é bem sórdido, a comédia mais engraçada que Park alguma vez assinou.

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Muita dessa qualidade humorística deve-se a Lee Byung-hun no papel principal e melhor prestação de uma longa carreira no cinema e na televisão coreana – provavelmente já o viste em títulos como “Doce Tortura” ou “Eu Vi o Diabo” ou “Squid Game.” Outro dos grandes desempenhos do TIFF surgiu no filme que ficou em segundo lugar, atrás da sátira coreana. Refiro-me a “Sentimental Value” de Joachim Trier, que já em Cannes ganhou o Grand Prix, e ao retrato que Stellan Skarsgård faz a um realizador egocêntrico e emocionalmente oportunista, incapaz de comunicar com quem ama a não ser através da sua arte.

Ao lado de Renate Reinsve, Elle Fanning e Inga Ibsdotter Lilleaas, o ator norueguês salta à vista, capaz de descascar a interioridade da personagem com pouco mais que um olhar de esguelha. Mas, enfim, não posso fingir ter amado o filme. As expectativas eram enormes e, apesar de bem dramatizado e belíssimamente filmado, “Sentimental Value” fica aquém dos melhores trabalhos do seu realizador. Até diria que parece reciclar vários pontos na filmografia de Trier, repetindo estratégias com resultados menores. É claro que esta opinião não é especialmente popular e é certo que este melodrama com cheirinhos de mise en abyme vai dar que falar por muito tempo e é bem capaz de ganhar uma catrefa de prémios quando essa temporada tiver início.

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Fica atento a este post-mortem do 50º TIFF. Ainda há muito que explorar, incluindo a presença do cinema de expressão lusófona em Toronto. Entretanto, o Queer Lisboa também está quase a chegar. Não percas!


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